PRÓLOCUS
. Eu, artista, fiz esse quadro e coloquei aqui, no centro do mundo. Podendo também, claro está, ter dito: “fiz esse quadro e o coloquei ali”, e ali também seria o centro do mundo.
. O quadro é este que veem: circular, aformo; de seu meio espirram, em direção às bordas, gotas de tinta da cor que quiserem. E tudo o que virá a seguir será a partir dele.
DEPOIS QUE ANOITECI
. Pois, era o princípio. Tinha começado, enfim. Não bastaram todos aqueles 22, o começo era agora.
A última vez já não contava mais.
A 17, talvez nunca tenha contado.
A 19, nem existiu.
. (Que bom, pensou)
Como se não houvera um ontem,
como se ineditamente tivessem acabado de inventar o tempo, era agora que tudo começava, como tudo inicia pelo princípio
de todas as coisas.
ESTREIA
Boom! NASCEU. Cheia de braços e pernas. NASCEU.
O tronco em toda a sua elegância.
NASCEU.
Com o seu terceiro sexo. NASCEU. NASCEU, NASCEU, sim, NASCEU.
Mas nasceu faltando a cabeça.
(Onde lhe arranjariam uma cabeça?)
Cabeça-cabeça. Cabeça-pescoço. Cabeça-cabeloucareca.
Uma que acompanhe: 2 auditores; 2 ventosas; 2 oculares; 1 devorante.
Devorante,
ser-corpo
até.
EM BUSCA DOS SETE ORIFÍCIOS
. Foi a mãe torta quem disse: ide e buscai os teus sete orifícios, ser-corpo, para seres em todos os sentidos.
. Semicolcheias, duas, em dois lugares aleatórios da sua não-cabeça;
. Orquídea e maresia que exalassem, assim mesmo, em lugar de ventosas que de fora para dentro sentissem de dentro para fora;
. Faróis trazidos da Barra, de Lanzarote*, de Cabo
Branco ou do mar aberto. Escolheu também dois desses e os pôs à frente, como
guias;
. Do espaço,
um buraco negro, com o qual tudo
devorou dali por diante.
AO CABO
Era agora 34
de 29.
[Luz crepuscular ilumina todo o espaço
OU
Luz que sugira o amanhecer do dia ou de um minuto qualquer, tanto faz. Mas estamos naquele momento do dia em que, como diziam os avós, a natureza muda de guarda e não há quem nos proteja. É aquela hora de transição, em que o passo seguinte vai dar. Um meio do caminho, um entrelugar, uma indefinição. É aqui onde aquilo que tudo começou, lá no princípio de todas as coisas, deve terminar.]
[A não ser que inventem um outro final pra essa história.]
EPÍLOCUS
. E como quase nunca nos é permitido decidir sobre o começo das coisas, de todas elas, que possamos ao menos mudar o final – de uma delas. Digamos que o nosso ser-corpo, quase completo, conseguiu sair do entrelugar em que o haviam colocado e
. foi viver numa casinha caiada de janelas azuis lá na beirada de um lugar que não conhecemos, porque não nos foi dada a informação, nem o será. Torcemos para que, na sua incompletude, o ser-corpo viva em paz e não volte a partir
em mais nenhum pedaço.