CENA 1 – O AR
Ouve-se
o som de um ponteiro de relógio* anunciar-se por 30 compassos de segundo. Após
esse tempo, alguém puxa forte o fôlego. Quando dá-se a ver o palco, temos um
ator de pé, a olhar para a plateia e a mostrar-lhe que está puxando o fôlego, o
que faz cada vez mais calmamente, até que regulariza a respiração.
Após
alguns poucos segundos quieto, ele fala:
[*Outras
alternativas para este som seriam a evasão de gás de uma panela de pressão, ou
de uma locomotiva a vapor, enfim, qualquer som em que identifiquemos o escape
de ar. Seja qual for, deve durar 30 segundos]
Foi quando finalmente seu diafragma voltou ao lugar,
seu diafragma descomprimido forçadamente pela
quantidade de ar que,
ar que com algum desespero, ele sugava para dentro de
si,
de si, de todas as direções que estavam ao seu
alcance, a boca escancarada como um grito mudo.
A boca escancarada.
‘Mas que Diabo’, pensou. Que Diabo, que pancada, o que
é que há?
E massageou lá o lugar que doía, como que
certificando-se de que ainda estava tudo em seu devido.
[...]
Posso demonstrar:
VOCÊS PERCEBEM COMO EU ENCHO RAPIDAMENTE ESTE BALÃO DE
AR E COMO FAÇO O AR SAIR AOS POUCOS, DIMINUINDO, COM OS POLEGARES E OS
INDICADORES QUE PUXAM AS BORDAS DA ABERTURA DO BALÃO PARA OS LADOS, A ÁREA DE
ESCAPE DESSE AR, FAZENDO COM QUE ELE se esvaia lentamente... ?
Pois deu-se exatamente o contrário no caso a que vim
fazer mênção. Sim, senhores, o contrário, pois, com a pancada, o ar esvaiu-se de
si de uma vez só; assustado o diafragma, que empurrou sem cerimônias o ar abrigado
dos pulmões que o faziam circular com aquela dinâmica naturalmente instituída. Compreendido
o choque, foi d e m o r a d e s e s p e r a d a m e n t e catá-lo, foi catar o
ar de volta, o ar a volta sugado pela boca escancarada, a boca-orifício para
dentro da qual encontraríamos um diafragma descontraindo-se. Vocês conseguem
imaginar?
Por
algum artifício da direção, sai o ator e entra uma atriz.
Atriz
De manhã
cedo você... Eu também faço isso... Você pega as almofadas amassadas da noite anterior
e as afofa, dando pancadinhas carinhosas até que o seu conteúdo se uniformize e
de fora vejamos o harmonioso desenho de um quadrado, se quadrada ela for, e
suas duas superfícies, a superior e a inferior, perfeitamente lisas. Porém, se
houver um furo indesejado em qualquer ponto da sua almofada, inevitavelmente
alguma quantidade de espuma irá escapar de seu interior. Percebem por que? Ao
dar as carinhosas pancadinhas na almofada, você comprime o que seria o
diafragma dela e, num sopro violento (sim, pergunte a ela!), vai cuspir flocos
de espuma, vingativamente sujando o carpete da sua sala.
Nova
transição. Sai atriz e entrar o ator que vimos a princípio.
Ator
Não fosse
aquele furo indesejado e a dinâmica naturalmente instituída de circulação de ar
nem faria sentido. Mas o caso é que, recuperado o fôlego, a boca escancarada
não soube mais fechar. A pancada, quem quer que a tenha dado, donde quer que
tenha vindo, abriu-lhe um buraco desconhecido, o qual não avistamos, por que a
boca não lhe serve de entrada. A boca, na verdade, só lhe representa. É
metáfora. Esse buraco, indesejado que fosse, tanto ou mais quanto o furo da
almofada, esse vazio a que ele dava chamaram-lhe FOME.
Tempo.
Nova transição.
CENA 2 – O MÚSCULO
Um
terceiro ator e o primeiro
- Que fosse ser selvagem.
- Para isso plantei minhas árvores, criei meu próprio
bosque, pois não há mais homens capazes de lançar-se assim em florestas
desconhecidas, por maior que seja a fome. Não há mais heróis, não somos nobres.
- Quanto tempo isso levou?
- Muitos anos, não lembro ao certo. As mudas que me
deram eram de espécie outra que não reconheci. E elas custaram a crescer.
- E o que você fez durante esse tempo?
- Quase morri de fome. Um pouco todos os dias. Me enojavam
as mesas fartas. Meus ossos calcificavam com o Sol a pino. E por mais milhas
que eu andasse, era a mesma a paisagem que se via. E mesmo assim não cessava o
desejo.
Entra
atriz carregando comidas como chocolates, vinho e outras especiarias
afrodisíacas. Começa a alimentar o primeiro ator, que aceita o que ela lhe
oferece, comendo aos bocados e, ao mesmo tempo, fazendo careta para as delícias
que degusta. Essa ação não deve interromper o diálogo.
- Como você suportou?
- Aos gritos, aos pulos, a roçar-me, a devorar-me por
dentro todos os órgãos. Sobraram-me apenas os pulmões e o diafragma, que
outrora violentaram, no dia em que inaugurou-se a minha fome.
- [Meio para a plateia, meio para o primeiro
ator] Mil pancadas dei-lhe mais e os músculos não fraquejaram, nem sequer
os da face, e a boca conservou-se aberta.