domingo, 25 de agosto de 2013

Da oficina Dramáticas Contemporâneas, ministrada por Diones Camargo, a partir do plot de Karina Oliveira - segundo exercício dramatúrgico (em edição, em continuação...)


CENA 1 – O AR

Ouve-se o som de um ponteiro de relógio* anunciar-se por 30 compassos de segundo. Após esse tempo, alguém puxa forte o fôlego. Quando dá-se a ver o palco, temos um ator de pé, a olhar para a plateia e a mostrar-lhe que está puxando o fôlego, o que faz cada vez mais calmamente, até que regulariza a respiração.
Após alguns poucos segundos quieto, ele fala:
[*Outras alternativas para este som seriam a evasão de gás de uma panela de pressão, ou de uma locomotiva a vapor, enfim, qualquer som em que identifiquemos o escape de ar. Seja qual for, deve durar 30 segundos]


Foi quando finalmente seu diafragma voltou ao lugar,
seu diafragma descomprimido forçadamente pela quantidade de ar que,
ar que com algum desespero, ele sugava para dentro de si,
de si, de todas as direções que estavam ao seu alcance, a boca escancarada como um grito mudo.
A boca escancarada.
‘Mas que Diabo’, pensou. Que Diabo, que pancada, o que é que há?
E massageou lá o lugar que doía, como que certificando-se de que ainda estava tudo em seu devido.
[...]

Posso demonstrar:

VOCÊS PERCEBEM COMO EU ENCHO RAPIDAMENTE ESTE BALÃO DE AR E COMO FAÇO O AR SAIR AOS POUCOS, DIMINUINDO, COM OS POLEGARES E OS INDICADORES QUE PUXAM AS BORDAS DA ABERTURA DO BALÃO PARA OS LADOS, A ÁREA DE ESCAPE DESSE AR, FAZENDO COM QUE ELE se esvaia lentamente... ?

Pois deu-se exatamente o contrário no caso a que vim fazer mênção. Sim, senhores, o contrário, pois, com a pancada, o ar esvaiu-se de si de uma vez só; assustado o diafragma, que empurrou sem cerimônias o ar abrigado dos pulmões que o faziam circular com aquela dinâmica naturalmente instituída. Compreendido o choque, foi d e m o r a d e s e s p e r a d a m e n t e catá-lo, foi catar o ar de volta, o ar a volta sugado pela boca escancarada, a boca-orifício para dentro da qual encontraríamos um diafragma descontraindo-se. Vocês conseguem imaginar?

Por algum artifício da direção, sai o ator e entra uma atriz.

Atriz

     De manhã cedo você... Eu também faço isso... Você pega as almofadas amassadas da noite anterior e as afofa, dando pancadinhas carinhosas até que o seu conteúdo se uniformize e de fora vejamos o harmonioso desenho de um quadrado, se quadrada ela for, e suas duas superfícies, a superior e a inferior, perfeitamente lisas. Porém, se houver um furo indesejado em qualquer ponto da sua almofada, inevitavelmente alguma quantidade de espuma irá escapar de seu interior. Percebem por que? Ao dar as carinhosas pancadinhas na almofada, você comprime o que seria o diafragma dela e, num sopro violento (sim, pergunte a ela!), vai cuspir flocos de espuma, vingativamente sujando o carpete da sua sala.

Nova transição. Sai atriz e entrar o ator que vimos a princípio.

Ator

     Não fosse aquele furo indesejado e a dinâmica naturalmente instituída de circulação de ar nem faria sentido. Mas o caso é que, recuperado o fôlego, a boca escancarada não soube mais fechar. A pancada, quem quer que a tenha dado, donde quer que tenha vindo, abriu-lhe um buraco desconhecido, o qual não avistamos, por que a boca não lhe serve de entrada. A boca, na verdade, só lhe representa. É metáfora. Esse buraco, indesejado que fosse, tanto ou mais quanto o furo da almofada, esse vazio a que ele dava chamaram-lhe FOME.

Tempo. Nova transição.

CENA 2 – O MÚSCULO

Um terceiro ator e o primeiro

- Que fosse ser selvagem.
- Para isso plantei minhas árvores, criei meu próprio bosque, pois não há mais homens capazes de lançar-se assim em florestas desconhecidas, por maior que seja a fome. Não há mais heróis, não somos nobres.
- Quanto tempo isso levou?
- Muitos anos, não lembro ao certo. As mudas que me deram eram de espécie outra que não reconheci. E elas custaram a crescer.
- E o que você fez durante esse tempo?
- Quase morri de fome. Um pouco todos os dias. Me enojavam as mesas fartas. Meus ossos calcificavam com o Sol a pino. E por mais milhas que eu andasse, era a mesma a paisagem que se via. E mesmo assim não cessava o desejo.

Entra atriz carregando comidas como chocolates, vinho e outras especiarias afrodisíacas. Começa a alimentar o primeiro ator, que aceita o que ela lhe oferece, comendo aos bocados e, ao mesmo tempo, fazendo careta para as delícias que degusta. Essa ação não deve interromper o diálogo.

- Como você suportou?
- Aos gritos, aos pulos, a roçar-me, a devorar-me por dentro todos os órgãos. Sobraram-me apenas os pulmões e o diafragma, que outrora violentaram, no dia em que inaugurou-se a minha fome.
- [Meio para a plateia, meio para o primeiro ator] Mil pancadas dei-lhe mais e os músculos não fraquejaram, nem sequer os da face, e a boca conservou-se aberta.

sábado, 10 de agosto de 2013

Caetano, sobre Nara

(alguém pode tomar isto para si)

Sentia-se nela o gosto 
da liberdade que tinha sido conquistada com dificuldade e decisão.
Por isso
todos os seus gestos e todas as suas palavras pareciam nascer
de um realismo direto e sério, mas resultavam delicados e graciosos como
os de uma menina tímida e passiva.
Não se pode esquecer que ela, a essa altura,
devia ter vinte anos.


Verdade tropical, p. 50.