sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Sobre aquela com quem tenho sonhado às noites, invariavelmente

Quero de (amo em) ti o gosto pela Vida.

(M. Yourcenar adaptada)

terça-feira, 29 de outubro de 2013

As lágrimas do 'Evangelho'

d'O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago:

'Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por este mesmo e único motivo.' -- p. 83

'(...) o infante Jesus acordou, mas agora a valer, que antes mal abrira os olhos quando sua mãe o enfaixara para a viagem, e pediu alimento com a sua voz de choro, única que ainda tem. Um dia, como qualquer de nós, outras vozes virá a aprender, graças às quais saberá exprimir outras fomes e experimentar outras lágrimas.' -- p. 96

'Chua, então, já não chorava, mas os seus olhos nunca mais voltarão a estar secos, que esse é o choro que não tem remédio, aquele lume contínuo que queima as lágrimas antes que elas possam surgir e rolar pelas faces.' -- p. 149

terça-feira, 15 de outubro de 2013

domingo, 25 de agosto de 2013

Da oficina Dramáticas Contemporâneas, ministrada por Diones Camargo, a partir do plot de Karina Oliveira - segundo exercício dramatúrgico (em edição, em continuação...)


CENA 1 – O AR

Ouve-se o som de um ponteiro de relógio* anunciar-se por 30 compassos de segundo. Após esse tempo, alguém puxa forte o fôlego. Quando dá-se a ver o palco, temos um ator de pé, a olhar para a plateia e a mostrar-lhe que está puxando o fôlego, o que faz cada vez mais calmamente, até que regulariza a respiração.
Após alguns poucos segundos quieto, ele fala:
[*Outras alternativas para este som seriam a evasão de gás de uma panela de pressão, ou de uma locomotiva a vapor, enfim, qualquer som em que identifiquemos o escape de ar. Seja qual for, deve durar 30 segundos]


Foi quando finalmente seu diafragma voltou ao lugar,
seu diafragma descomprimido forçadamente pela quantidade de ar que,
ar que com algum desespero, ele sugava para dentro de si,
de si, de todas as direções que estavam ao seu alcance, a boca escancarada como um grito mudo.
A boca escancarada.
‘Mas que Diabo’, pensou. Que Diabo, que pancada, o que é que há?
E massageou lá o lugar que doía, como que certificando-se de que ainda estava tudo em seu devido.
[...]

Posso demonstrar:

VOCÊS PERCEBEM COMO EU ENCHO RAPIDAMENTE ESTE BALÃO DE AR E COMO FAÇO O AR SAIR AOS POUCOS, DIMINUINDO, COM OS POLEGARES E OS INDICADORES QUE PUXAM AS BORDAS DA ABERTURA DO BALÃO PARA OS LADOS, A ÁREA DE ESCAPE DESSE AR, FAZENDO COM QUE ELE se esvaia lentamente... ?

Pois deu-se exatamente o contrário no caso a que vim fazer mênção. Sim, senhores, o contrário, pois, com a pancada, o ar esvaiu-se de si de uma vez só; assustado o diafragma, que empurrou sem cerimônias o ar abrigado dos pulmões que o faziam circular com aquela dinâmica naturalmente instituída. Compreendido o choque, foi d e m o r a d e s e s p e r a d a m e n t e catá-lo, foi catar o ar de volta, o ar a volta sugado pela boca escancarada, a boca-orifício para dentro da qual encontraríamos um diafragma descontraindo-se. Vocês conseguem imaginar?

Por algum artifício da direção, sai o ator e entra uma atriz.

Atriz

     De manhã cedo você... Eu também faço isso... Você pega as almofadas amassadas da noite anterior e as afofa, dando pancadinhas carinhosas até que o seu conteúdo se uniformize e de fora vejamos o harmonioso desenho de um quadrado, se quadrada ela for, e suas duas superfícies, a superior e a inferior, perfeitamente lisas. Porém, se houver um furo indesejado em qualquer ponto da sua almofada, inevitavelmente alguma quantidade de espuma irá escapar de seu interior. Percebem por que? Ao dar as carinhosas pancadinhas na almofada, você comprime o que seria o diafragma dela e, num sopro violento (sim, pergunte a ela!), vai cuspir flocos de espuma, vingativamente sujando o carpete da sua sala.

Nova transição. Sai atriz e entrar o ator que vimos a princípio.

Ator

     Não fosse aquele furo indesejado e a dinâmica naturalmente instituída de circulação de ar nem faria sentido. Mas o caso é que, recuperado o fôlego, a boca escancarada não soube mais fechar. A pancada, quem quer que a tenha dado, donde quer que tenha vindo, abriu-lhe um buraco desconhecido, o qual não avistamos, por que a boca não lhe serve de entrada. A boca, na verdade, só lhe representa. É metáfora. Esse buraco, indesejado que fosse, tanto ou mais quanto o furo da almofada, esse vazio a que ele dava chamaram-lhe FOME.

Tempo. Nova transição.

CENA 2 – O MÚSCULO

Um terceiro ator e o primeiro

- Que fosse ser selvagem.
- Para isso plantei minhas árvores, criei meu próprio bosque, pois não há mais homens capazes de lançar-se assim em florestas desconhecidas, por maior que seja a fome. Não há mais heróis, não somos nobres.
- Quanto tempo isso levou?
- Muitos anos, não lembro ao certo. As mudas que me deram eram de espécie outra que não reconheci. E elas custaram a crescer.
- E o que você fez durante esse tempo?
- Quase morri de fome. Um pouco todos os dias. Me enojavam as mesas fartas. Meus ossos calcificavam com o Sol a pino. E por mais milhas que eu andasse, era a mesma a paisagem que se via. E mesmo assim não cessava o desejo.

Entra atriz carregando comidas como chocolates, vinho e outras especiarias afrodisíacas. Começa a alimentar o primeiro ator, que aceita o que ela lhe oferece, comendo aos bocados e, ao mesmo tempo, fazendo careta para as delícias que degusta. Essa ação não deve interromper o diálogo.

- Como você suportou?
- Aos gritos, aos pulos, a roçar-me, a devorar-me por dentro todos os órgãos. Sobraram-me apenas os pulmões e o diafragma, que outrora violentaram, no dia em que inaugurou-se a minha fome.
- [Meio para a plateia, meio para o primeiro ator] Mil pancadas dei-lhe mais e os músculos não fraquejaram, nem sequer os da face, e a boca conservou-se aberta.

sábado, 10 de agosto de 2013

Caetano, sobre Nara

(alguém pode tomar isto para si)

Sentia-se nela o gosto 
da liberdade que tinha sido conquistada com dificuldade e decisão.
Por isso
todos os seus gestos e todas as suas palavras pareciam nascer
de um realismo direto e sério, mas resultavam delicados e graciosos como
os de uma menina tímida e passiva.
Não se pode esquecer que ela, a essa altura,
devia ter vinte anos.


Verdade tropical, p. 50.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Da oficina de dramaturgia ministrada por Marcio Abreu - exercício dramatúrgico (em edição, talvez nunca termine, talvez termine em cena)

PRÓLOCUS

.      Eu, artista, fiz esse quadro e coloquei aqui, no centro do mundo. Podendo também, claro está, ter dito: “fiz esse quadro e o coloquei ali”, e ali também seria o centro do mundo.
.      O quadro é este que veem: circular, aformo; de seu meio espirram, em direção às bordas, gotas de tinta da cor que quiserem. E tudo o que virá a seguir será a partir dele.  





DEPOIS QUE ANOITECI

.      Pois, era o princípio. Tinha começado, enfim. Não bastaram todos aqueles 22, o começo era agora.
A última vez já não contava mais.
A 17, talvez nunca tenha contado.
A 19, nem existiu.
.                        (Que bom, pensou)

Como se não houvera um ontem,
como se ineditamente tivessem acabado de inventar o tempo, era agora que tudo começava, como tudo inicia pelo princípio
de todas as coisas.


ESTREIA

Boom! NASCEU. Cheia de braços e pernas. NASCEU.
O tronco em toda a sua elegância.
NASCEU.
Com o seu terceiro sexo. NASCEU. NASCEU, NASCEU, sim, NASCEU.
Mas nasceu faltando a cabeça.
(Onde lhe arranjariam uma cabeça?)
Cabeça-cabeça. Cabeça-pescoço. Cabeça-cabeloucareca.
Uma que acompanhe: 2 auditores; 2 ventosas; 2 oculares; 1 devorante.

Devorante,
ser-corpo
até.


EM BUSCA DOS SETE ORIFÍCIOS

.       Foi a mãe torta quem disse: ide e buscai os teus sete orifícios, ser-corpo, para seres em todos os sentidos.

.       Semicolcheias, duas, em dois lugares aleatórios da sua não-cabeça;
.       Orquídea e maresia que exalassem, assim mesmo, em lugar de ventosas que de fora para dentro sentissem de dentro para fora;
.       Faróis trazidos da Barra, de Lanzarote*, de Cabo Branco ou do mar aberto. Escolheu também dois desses e os pôs à frente, como guias;
.       Do espaço, um buraco negro, com o qual tudo devorou dali por diante.

     


AO CABO

Era agora 34
de 29.

[Luz crepuscular ilumina todo o espaço
OU
Luz que sugira o amanhecer do dia ou de um minuto qualquer, tanto faz. Mas estamos naquele momento do dia em que, como diziam os avós, a natureza muda de guarda e não há quem nos proteja. É aquela hora de transição, em que o passo seguinte vai dar. Um meio do caminho, um entrelugar, uma indefinição. É aqui onde aquilo que tudo começou, lá no princípio de todas as coisas, deve terminar.]


[A não ser que inventem um outro final pra essa história.]  



EPÍLOCUS

.        E como quase nunca nos é permitido decidir sobre o começo das coisas, de todas elas, que possamos ao menos mudar o final – de uma delas. Digamos que o nosso ser-corpo, quase completo, conseguiu sair do entrelugar em que o haviam colocado e

.                                                                      foi viver numa casinha caiada de janelas azuis lá na beirada de um lugar que não conhecemos, porque não nos foi dada a informação, nem o será. Torcemos para que, na sua incompletude, o ser-corpo viva em paz e não volte a partir

em mais nenhum pedaço.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Que assim seja

E numa tarde dessas, quando o pai, na sua gravidade, estiver perdido nos pensamentos, eu vou caminhar na sua direção e sentar bem perto dele e puxar sem constrangimento a conversa que nunca tivemos. É assim que será, e mais tudo de bom que há de vir depois.

André, personagem de Lavoura Arcaica, o filme.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Um registro, por favor

de algo bom que ouvi hoje.
[E finalmente um post realista, não romântico!]

Última aula de Estudos e Práticas da Palavra, [inspiradora] disciplina cursada neste primeiro semestre do Mestrado em Artes Cênicas. Após uma série de textos escritos e compartilhados, vocalizados e performados com colegas e professora, num de nossos últimos exercícios, lemos, cada um, um texto de um colega anônimo, dos que produzimos ao longo dos encontros. Da leitura do meu, ouvi o seguinte comentário: que fosse o texto, este ou outro qualquer, lido por qualquer outra pessoa, ainda assim se ouviria a minha voz, por que tenho uma sensibilidade muito particular e reconhecível. 

Abaixo, um breve "perfil do autor" que o leitor, no caso, um colega, teve que escrever a partir do texto lido.
PS: Não foi a mesma pessoa que fez o comentário que transcrevi acima.


sábado, 13 de julho de 2013

Donde o título deste sítio

Pra onde vão os trens, meu pai? Para Mahal, Tamí, para Camirí, espaços no mapa, 
e depois o pai ria: também pra lugar algum meu filho, tu podes ir e ainda que se mova o trem, tu não te moves de ti.

HH

sábado, 1 de junho de 2013

Classificados

'(...)
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui'


Paulo Leminski, Amar você é coisa de minutos...

quarta-feira, 29 de maio de 2013

anoiteceu pela manhãzinha

às nove da manhã, a luz já era de seis da tarde
algo me atravessa a passagem
e acompanho com o olhar, surpresa, ausente
ainda importa
mas, já não importa
por que, na volta, a chuva cai como maré d'água
me recolho em casa
mas a vontade?
é de sair para fora de todas as sacadas, de todas as lógicas

domingo, 26 de maio de 2013

Por que a coisa tá tão boa (e sempre pode melhorar),

"Tinha medo de tudo aquilo que não ficava, de tudo aquilo que não permanecia."

sobre a Diva, em Como se fosse...

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Geografia (ou, queria, escrito de um diário de décadas idas)

Busco em terras que vou tocando
como no poema do Campos
aquilo que não está em parte alguma
e cada lugar é bom
por que dele posso partir.
Ante este por-vir
distraio o tempo
faço a 'passagem das horas'
como posso
e me esforço para aproveitar o quando.
Na falta de uma boa companhia
- ah!, como tem me feito falta -
olho pra cima
e a lua é minha convidada
para um passeio noturno,
pedalada,
pela tal Cidade Baixa.
Altero a velocidade, sigo meu ritmo (não preciso de música)
balizado pelos carros, pedestres, lombadas.
Mas há outras ruas, mais silenciosas
e também por elas pedalo, receosa
ruas que me recebem com um cheiro inesperado de jasmim
misturado com o odor da erva.
Atravesso a travessa escura, temerosa
mas já logo saio à luz.
Aponto para o caminho de casa e sigo.


segunda-feira, 22 de abril de 2013

Segunda-feira, e só

Eu temo perder aquela que eu nunca toquei
o amor me mantém escrava numa jaula de lágrimas
Eu rôo minha língua com a qual nunca posso falar com ela
Eu sinto falta de uma mulher que nunca nasceu
Eu beijo uma mulher através dos anos que dizem que nunca devemos nos encontrar

Tudo passa
Tudo perece
Tudo empalidece

meu pensamento se vai com um sorriso assassino
deixando uma ansiedade discordante
que ruge na minha alma


[Sarah Kane em Psicose 4:48. Há três anos queria ler essa peça (?). Por coincidência, aconteceu de eu lê-la numa segunda-feira deste novo ciclo.]

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Por que é segunda-feira, há o que dizer, mesmo na ausência

Cada palavra divide um pedaço do real na tua boca. Um pedaço que é meu, por que eu te ouço, digo, que é meu quando eu te escuto, por que esta fatia está toda inserida na minha realidade. Cada palavra que sai da tua boca me diz de um mundo, e de mundo em mundo eu vou formando o teu universo, apreendendo-te. Palavra, buraco da fechadura. Palavra, ponte por onde te alcanço. E a palavra do compositor? É ela – são elas – toda a sua realidade. Vento cortinhas papeis verso beijo sonho, todos os substantivos empurrados para vida pelos verbos passa varre leva vem arrasta zomba. E, empurrados para a vida, adquirem qualidades: bandido perdido refém. Sim, te ouço e escuto, e penso que já sei do todo pelo pedaço de real que acolho. Não sei – nem do todo nem do pedaço – até chegar aqui, até estar aqui e compartilhar dos mesmos substantivos teus, empurrados pelos mesmos verbos teus e adquirir as mesmas qualidades tuas. Aí sim, talvez, um pedaço do teu real. Mas, sempre, só teu. E o meu, só meu.


[Escrito às pressas na manhã de hoje, para a aula, a partir de um texto do Novarina. Lá, minha interlocutora se fez ausência, e disfarço na referência a Vitor Ramil.]

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Por que é segunda-feira, o coração é vagabundo

Me assusta com a chegada pálida e não sei que outras formas de bom dia ainda se usa. Na outra caminhada, em círculo e às cegas, não sei é se o braço que encontro, quente e macio, é o mesmo que procuro. Presto atenção ao teu dia, tentando captar-te, conhecer-te. Noutra hora, olho a boca que diz algo como "... tua boca", ou foi isso que quis ouvir. O resto é silêncio. Sai desenfreada porta afora. Já não te alcanço.




domingo, 7 de abril de 2013

Epifanias no meio de um show onde rio, onde choro, onde sou

Chegada do show da Malluzinha, algumas considerações:

- que, a despeito do que alguns desinformados pensam por aí, por trás daquela carinha fofa tem uma menina esperta e um mundo de referências;
- que essa menina cresceu um bocado, tá desenvolta no palco, forma linhas bonitas com o corpo, enfim, tá dadivosinha;
- que, se repararmos nas letras, encontramos algumas passagens lindas que essa menina atravessou no seu caminho para se tornar mulher (é, Simone, é assim mesmo);
- que, tendo a mesma idade dela (quase), me comovem essas passagens, pelas quais eu mais ou menos também passei;
- que, mesmo estando tudo nas letras, a forma não perdeu a leveza. Mas que essa leveza não me engana, ela tem fundura;
- quanto a mim, cansei do peso. Sou agora adepta da leveza (mas, não se enganem, uma leveza com fundura).


Queria mesmo poder cantar, assumir sem culpa o desvio da minha velhice: “talvez eu seja pequena...”

segunda-feira, 25 de março de 2013

Domingo no parque

Eu (talvez não exatamente eu, vá lá) poderia construir uma dramaturgia sobre o que se me (o sentido de experiência e seu radical e todas as palavras e significados derivados) tem passado nos últimos meses utilizando somente as letras de algumas canções do Caetano, que tem sido o meu compositor/letrista favorito desde que mo foi apresentado, digo melhor, desde que me abriram os olhos para o tal naquela noite de fevereiro. Hoje, particularmente, eu gostaria de fazer um pedido ao Caê: que uma nova canção/letra fosse criada como um híbrido (estou mesmo cheia das ideias do que venho estudando, lendo), mais como a mula de Döblin que como o monstro kafkiano, da clássica London, London com a recém redescoberta Menino Deus¹.

¹Nota de meio de escrita: digo que a canção em questão é recém redescoberta porque entendi que “Menino Deus”, além de se referir a um Deus menino erótico, é um bairro de Porto Alegre, onde hoje vivo. Um bairro, inclusive, bem próximo de minha casa. Quanto aos versos “Um Porto A/alegre é bem mais que um S/seguro/Na rota das nossas viagens no escuro”, gostaria muito de cantá-los com convicção e crença, mas ainda não é tempo para isso, principalmente depois da cena que há menos de uma hora presenciei: um “guri”, ao que entendi, funcionário de um supermercado, forçava a cliente, a quem deveria apenas ajudar a carregar as compras, a abrir a porta do edifício quase vizinho ao meu e deixá-lo subir, sabe-se lá Deus para quê. Ela gritava e ninguém acodia, tampouco eu que fiquei paralisada. (E eu que julgava ser esta uma cidade mais livre de violência).

Sim, é que me sinto um tanto como o eu lírico (o próprio Caetano dos anos ’70 e não a Macabéa de O nome da cidade) dos versos “I’m wandering round and round, nowhere to go/I’m lonely in London, London/Is lovely so/(...)]/I know, I know, no one here to say ‘hello’”. Não haveria um “I’m lonely in Poa, Poa”? Eu caminho pelo parque pouco tropical olhando grupos e casais de todas a combinações de gênero possíveis, sentados ou deitados na grama, se acarinhando, tomando chimarrão, ou mesmo caminhando de mãos dadas com seus caninos peludos de guia. Olho e, no entanto, “I choose no face to look at/Choose no way”. Me sinto uma espectadora de um teatro participativo (?), desses em que colocam o público no meio do espaço onde acontece a ação cênica. Estou lá, em carne viva, mas sem ser percebida (mesmo quando sou solicitada a fotografar uma pose ou quando a garotinha – suspeita, ou eu que sou muito desconfiada? – vem e me pede o telefone emprestado). Invejo os grupos e casais sentados ou deitados na grama, se acarinhando, tomando chimarrão, ou mesmo caminhando de mãos dadas com seus caninos peludos de guia. Mas penso que ao tempo também é preciso dar tempo e que em alguma hora as coisas vão acontecer, naturalmente. E penso, por fim, “It’s good, at least, to live, and I agree/(…)/I just happen (I’m just glad!) to be here/And it’s ok/(…)/I came around to say ‘yes’/And I say”.

terça-feira, 19 de março de 2013

Someone


Ensaiei um post inicial sobre outro tema, mas as linhas que seguem dizem de algo que, para além das outras tantas descobertas que venho realizando por este novo ciclo, tem despertado meu interesse. Digo melhor, alguém. Por que não é sempre que há alguém. Mas, por agora, parece que está para haver. Esse alguém de quem falo me aparece às segundas-feiras e ainda não tive a sorte de esbarrar com o acaso num outro dia da semana. Ela, assim como eu, não tem o corpo perfeito (e claro que digo isso em relação aos padrões que por aí inventaram e que não são o meu). É assim: baixinha, meio peituda, as pernas finas. Tem a pele clara que parece macia ao meu olhar enviesado, disfarçado. O olhar dela ainda não captei, mas gosto do modo como eles (os olhos) ficam apertados sob as sobrancelhas grossas quando ri. - Esqueci de falar do sinalzinho que tem na ponta do nariz e tive que voltar aqui pra registrar! - O cabelo é um tanto extemporâneo. As mãos são, decididamente, muito bonitas. De unhas bem cuidadas, dedos enfeitados por anéis de prata. Tem muito bom gosto as suas mãos. A voz, meio falha, mas, ao mesmo tempo, segura. Fala coisas de terapia, de yoga, sem aparentemente ser muito devota dessas práticas, mas acreditando. Fala de cinema: quer ser roteirista. Penso que nossos interesses já se aproximam de cara por aí. Enquanto ela estuda e se dedica sobre os roteiros cinematográficos, eu cá trabalho com os “roteiros” para teatro, a chamada dramaturgia. Gosto de ouvi-la falar sobre seus assuntos, se posicionar nos debates. É esperta, bem-humorada e segura. É também jovial, o que cai muito bem com seus trinta e poucos de experiência.Tenho vontade de puxar assunto. Até pensei sobre um filme que tem a ver um pouco com as discussões que tivemos nos últimos encontros: Amantes Constantes (Les Amants Réguliers), do Philippe Garrel (pai do muso Louis e não o Bertolucci, por Deus!). Ia mesmo perguntar se ela conhecia quando, ao final da aula, acabamos nos dispersando. Enfim, espero encontrar esta mulher de nome proibido na próxima esquina, ou até que chegue a segunda-feira.


[Na tarde de ontem]

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Alheio[s]

INICIAÇÃO

Se vens a uma terra estranha
curva-te 

se este lugar é esquisito
curva-te

se o dia é todo estranheza
submete-te


— és infinitamente mais estranho.

(Orides Fontela)


***

Teoria umbilical 

Ser humano é criatura difícil. Difícil de duro mesmo, como explica o Aurélio. Tão duro que se torna impossível olhar para o próprio umbigo. A dureza impede a envergadura. Não satisfeito, observa o umbigo alheio; não satisfeito, ainda, interpreta, conjectura e apresenta teorias sobre o que sobrou do cordão umbilical do sujeito alvo. São construídos fatos, atitudes e até pares umbilicais hipotéticos. Quando o umbigo em questão se dá conta, o circo encontra-se armado: outros umbigos estão envolvidos, dentre os quais há sempre algum com quem nunca sequer conversou. Batata: o caráter da pequena cicatriz encontra-se comprometido. Para a reversão do quadro, o umbigo alvo come o pão que o diabo amassou, ou simplesmente acaba perdendo alguns pares. Como tudo é cíclico, após ter saído da situação, envolvem-no em outras [os estudos dos umbigos observadores são vastos]. Com o tempo, porém, o umbigo alvo, a depender de seu temperamento, condiciona-se e torna-se um umbigo teórico, e sai com seu bloquinho de anotações especulando novos umbigos, afinal, há quem tome conta do seu. ¹

¹ Devaneios de uma pessoa que pede encarecidamente aos não autorizados que deixem em paz o seu umbigo.

(Priscilla Ferreira)

***

Classificados:

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Mas que corta, corta

De todo modo, acho muito natural essa coisa de aproximações e des-aproximações entre as pessoas. Saudável até.

Estou partindo em boa hora.