domingo, 31 de outubro de 2010

Agreste (Malva-rosa)

de Newton Moreno, trechos


Quieta. A noite parecia uma pergunta difícil.

É muito triste uma mulher comendo
e chorando.

Não entendia
a morte. Não entendia homem. Naquele
momento, só entendia a perda.

Incomodou-a estar só.
Queria cantar para ouvir alguém.
Não sabia se Jesus estava com ela ou não.
Tinha Deus como uma certeza, mas às vezes achava
que Deus podia aparecer, tomar um café, enrolar
um fumo. Ficar mais íntimo. [...]
Olhe, Música e Deus ninguém vê.

Mesmo assim, a viúva acendeu o candeeiro.
Viu-se por inteiro pela primeira vez. Descobriu
então o que era mulher.

Cruel, a natureza é
Dá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedida
Dá o amor na desmedida.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Filha da simplicidade

É como se às vezes eu esquecesse que tive mãe. Mas ela está aqui, está em mim. Eu também sou ela quando me aprazo no trabalho em grupo, quando sou dramática e choro por qualquer palavra mal-dita. Também sou ela quando meu pai me faz sofrer – por me amar? Talvez tenha sido esse também o motivo pelo qual a fazia sofrer, mas ela também o amava, assim como eu. Mas parece que, em algumas questões, ele foi do verde para o podre e é mais dramático que nós duas juntas. É egoísta, não consegue se desprender de mim por medo de me perder, não se orgulha nem se alegra ao me ver a cada dia mais dona de mim por medo de me perder. Porque ele pensa que eu penso que sou alguma coisa, mas eu não penso, só ajo, e como ele quer que eu seja se não me solta as amarras? É como se eu só tivesse tido pai a vida inteira e ele se transformou numa figura absolutamente forte, um alter-ego que me acompanhará até não sei quando. Então, ao invés de eu contar meus planos e projetos, meus feitos secretos (secretos?) eu me calo, porque sei que ele não vai compartilhar desse momento bom, vai transformá-lo em agonia, em coisa ruim, em vontade de desistir, em panela de (de)pressão. Tenho me emocionado com as coisas mais banais que pode haver, com as conversas nas cozinhas alheias, com o café quente, com a bagunça no quarto, com o violão quebrado, porque não quero nada além de tais bobagens. Porque sou filha de minha mãe, sou filha da simplicidade, não do discurso diário sobre o último lançamento da Chevrolet, mas da mulher que quis um dia viver à beira da lagoa, entre ínfimas quatro paredes, tendo um fogão, uma cama e uma cômoda como única estrutura. É desta que sou filha. E quer saber, pai? Eu te amo, mas vai pra puta que pariu.