quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Uma crônica musical

de João de Barro


Mané Fogueteiro era o Deus das crianças,
da vila distante de três corações,
em dia de festa fazia rodinhas,
soltava foguete, soltava balões.
Mané Fogueteiro gostava da Rosa,
cabocla mais linda esse mundo não tem,
mas o pior é que o Zé Boticário,
gostava um bocado da Rosa também.
Um dia encontraram Mané Fogueteiro
de olhos vidrados, de bruços no chão:
um tiro certeiro varara-lhe o peito,
de volta da festa do Juca Romão.
E como os que morrem de tiro conservam
a ultima cena nos olhos sem luz,
um claro foguete de lagrimas frias,
alguém viu brilhar em seus olhos azuis.

Tudo são trechos que escuto, vem dela,
pois minha mãe é minha voz, como será que isso era?
Este som que hoje sim gera sois dói, dói,
aquele que considera a saudade,
uma mera contraluz que vem,
do que ficou pra trás, não este só desfaz
o ciclo
e a Rosa também.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Por uma vida ordinária

mais uma estória de cozinha


Dá pra ver dali daquele inox, redondo, ou melhor, chato, porque ele não oxida, nós é que sim, embora essa seja uma de minhas vontades, ou suponho ser o caminho para se chegar à principal delas. Redondo não, melhor, circular. Dá pra ver refletido o fogão,o microondas, a fruteira, o balcão, a mesa e, sentada na cadeira, dá pra ver a mim. Mas é tudo torto e eu não sei mais por que leis da Física para informar-lhes, mas sei que tem a ver com ótica. O que me faz lembrar a ópicis, a estética, a parte visual de um espetáculo. Aqui a cozinha toda é o palco, os eletros e móveis são cenário e eu uma personagem inativa a la Tchécov. Ao menos enquanto dura o meu repouso. Os olhos hipinóticos estão fixos na tigela inoxidável lá em cima do armário. Isso, de cima. Me impressiono porque dá pra ver muito e de um ângulo não habitual. Bonito isso, eu sentada na cadeira ao lado da mesa, o braço direito apoiado nela, as pernas uma na vertical outra na horizontal cruzadas sobre o assento. É uma cena. É bonita, não digo mais. A não ser que a beleza venha do ordinário da imagem. É que estou só em cena, só no meio da cozinha, que pertence à casa que, julgando a imagem, diriam que minha. É simples, e ela está feliz.
É outro dia. No movimento do corpo que lava roupa, de repente se depara com a imagem. Por um momento seria vista pela projeção de sua sombra num canto da cozinha, o Sol vermelho, encarnado atrás de si. Ela para e vai escrever esta frase na agenda. Depois volta e pensa que sua sombra representou, de certo modo, uma companhia. Uma companhia de cílios e nariz longo, como é seu perfil. Ela pensa que a sombra podia dar lugar a cores de verdade, a um corpo em 3D, que se iluminaria à presença do Sol. Um corpo que falasse, que sentisse, do qual gostasse. Um corpo que a deitaria agora, agora que está de saia e sutiã, em pleno calor de seu quarto, a grafar linhas. E se sentiriam até a respiração ser uma só, um só ritmo, como era com aquela sombra. Apenasmente. Uma casa, um lar e uma companhia, ordinariamente.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Saramago,

José



As mulheres, decididamente, triunfavam. Os seus órgãos genitais, com perdão da crueza anatómica, eram afinal a expressão, simultaneamente reduzida e ampliada, da mecânica expulsória do universo, toda essa maquinaria que procede por extracção, esse nada que vai ser tudo, essa ininterrupta passagem do pequeno ao grande, do finito ao infinito. [...]
quanto são insuficientes as palavras à medida que nos aproximamos da fronteira do inefável, queremos dizer amor e não nos chega à língua, queremos dizer quero e dizemos não posso.



das últimas páginas d´A jangada de Pedra,
ou tudo o que eu quis exprimir.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Fail

222 = ônibus errado. peguei ele 20 minutos adiantada e cheguei 15 atrasada na aula. resultado (da aula): péssima. fiquei nervosa, os dedos tremiam, nada de prazer. não sei se o professor acreditou no motivos de meu atraso. a cara cínica dele não permite sabê-lo, mas enfim. apesar da má execução do tema e das variações anteriores ele me passou duas músicas novas. chamam-se "Canção Francesa" e "Remando Suave". estressada como estava, foi só ele começar a tocar pra eu, num esforço sobrehumano, conter as lágrimas. quando me passou o cello e eu comecei a tocar, perguntou já havia tocado essa? não. tens o ouvido bom, hein? poderia ter dito não é o ouvido, é esse bem estar que vem tomando conta de mim desde que -- pra não dizer coração na iminência de uma paixão, que soa brega. até lingerie colorida andei comprando. anyway. a cabeça voava longe. depois dos meus quinze minutos de (tensa) aula, corri pra adufcg, onde estava havendo A Hora da Poesia. tema da vez: loucura. cheguei no finalzinho, a tempo de ouvir Mayra tocando violino lindamente (e aí as lágrimas vieram sem censura) e de eu falar um texto que, como expliquei na hora, não é poema, mas não deixa de ser poesia, contida n'A jangada de Pedra de Saramago.

A saber:

Ela é a que segue com os
olhos o comboio que vai passando e entristece de saudade da viagem que
não fará, ela é a que não pode ver um pássaro no céu sem experimentar um
apetite de alciónico voo, ela é a que, ao sumir-se um barco no
horizonte, arranca da alma um suspiro trémulo.


um pouco mais relaxada, voltei pra esperar a sala estar livre e aí me tranquei com o violoncelo durante uma hora, limite ao qual 'inda não havia chegado. isso por que me encantei pela música francesa, e só parei por que meus dedos pediam trégua, pelo amor de Deus. do contrário passaria o resto da noite tocando, repetindo, tocando, repetindo, tocando, repetindo a mesma música. das outras vezes parava por cansar da canção mesmo. mas dessa vez... bem, a melodia é simples, mas multipliquem por infinito o prazer que é tocá-la.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Da enunciação

Não queria fazer A Troca da Lígia Bojunga e agora tenho uma teoria científica para explicar meus motivos. Bakhtin, o próprio, disse que quando se vai expressar alguma ideia, ela perde a sua pureza. E isso porque, entre outras coisas, fica condicionada aos signos -- sociais, eis o maior problema -- pelos quais é traduzida. Nunca conseguimos explicar exatamente o que pensamos e, na minha opinião, a coisa fica diminuída. Falo da dimensão para o prórpio ser pensante mesmo.Enquanto era só atividade mental, ok, mas no momento em que sai, expresso, a coisa perde o seu valor.Ou talvez esse seja mesmo o efeito d´A Troca, mas ao invés de me sentir aliviada, como a menina-escritora, me sinto ridícula, pequena.
Isto posto, não iremos aos fatos.