terça-feira, 21 de setembro de 2010

Por uma vida ordinária

mais uma estória de cozinha


Dá pra ver dali daquele inox, redondo, ou melhor, chato, porque ele não oxida, nós é que sim, embora essa seja uma de minhas vontades, ou suponho ser o caminho para se chegar à principal delas. Redondo não, melhor, circular. Dá pra ver refletido o fogão,o microondas, a fruteira, o balcão, a mesa e, sentada na cadeira, dá pra ver a mim. Mas é tudo torto e eu não sei mais por que leis da Física para informar-lhes, mas sei que tem a ver com ótica. O que me faz lembrar a ópicis, a estética, a parte visual de um espetáculo. Aqui a cozinha toda é o palco, os eletros e móveis são cenário e eu uma personagem inativa a la Tchécov. Ao menos enquanto dura o meu repouso. Os olhos hipinóticos estão fixos na tigela inoxidável lá em cima do armário. Isso, de cima. Me impressiono porque dá pra ver muito e de um ângulo não habitual. Bonito isso, eu sentada na cadeira ao lado da mesa, o braço direito apoiado nela, as pernas uma na vertical outra na horizontal cruzadas sobre o assento. É uma cena. É bonita, não digo mais. A não ser que a beleza venha do ordinário da imagem. É que estou só em cena, só no meio da cozinha, que pertence à casa que, julgando a imagem, diriam que minha. É simples, e ela está feliz.
É outro dia. No movimento do corpo que lava roupa, de repente se depara com a imagem. Por um momento seria vista pela projeção de sua sombra num canto da cozinha, o Sol vermelho, encarnado atrás de si. Ela para e vai escrever esta frase na agenda. Depois volta e pensa que sua sombra representou, de certo modo, uma companhia. Uma companhia de cílios e nariz longo, como é seu perfil. Ela pensa que a sombra podia dar lugar a cores de verdade, a um corpo em 3D, que se iluminaria à presença do Sol. Um corpo que falasse, que sentisse, do qual gostasse. Um corpo que a deitaria agora, agora que está de saia e sutiã, em pleno calor de seu quarto, a grafar linhas. E se sentiriam até a respiração ser uma só, um só ritmo, como era com aquela sombra. Apenasmente. Uma casa, um lar e uma companhia, ordinariamente.