sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Ligando o cronômetro

Cheia de pontas e lanças, a vida às vezes se mostra redonda redonda.
E antes do Natal próximo, fará um ano que resolvi, dali a dez, criar um espetáculo sobre elas. Não, por causa delas e dos dez anos que as separam. Sobre o quê, exatamente, é o que vou descobrir no processo, que deve começar em algum momento, nalgum lugar, este aqui e este agora.
Por enquanto, tenho um álbum, espécie de diário que pertencia a uma, e mais alguns retalhos. E outro tanto de memória. Não é nada, não é nada, é suficiente pra me criar desejo.

Espero migrar este e os próximos escritos para um novo espaço, dedicado exclusivamente a esse projeto. Mas, por enquanto, deixa eu aqui, estar.

domingo, 7 de junho de 2015

Maria canta o drama-da-vida de Maricotinha¹

Sobre um chão de estrelas, os pés sempre descalços de Maricotinha. Eles acompanham, dançantes, o movimento dos astros como quem atravessa, na velocidade da luz, cinquenta anos de uma existência, como este chão, iluminada.

A voz rouca do carcará que espantou ouvidos em 1965 é a mesma que encerra, ciclicamente, sob uma versão instrumental, o espetáculo de seu agradecimento, e é a trajetória dessa ave sertaneja personificada na cantora que vemos, em cena, ser contada e cantada, em luz e som.
Maricotinha é personagem-narradora. Ela surge sobre o cenário tecnicolor de Bia Lessa à semelhança dos velhos contadores de estórias quando, sentada em seu quintal imaginário, rodeada de meninos ansiosos por lhe ouvir, canta uma estória. Esses meninos, presentes em uma das imagens projetadas no imenso telão de led instalado no chão, à guisa de cenografia, esses meninos somos nós, seus espectadores, e a estória que se conta e que se canta é um drama com a extensão de uma vida, o drama-da-vida de Maricotinha.
A tônica teatral dessa figura, que, segundo consta, se faz presente desde antes de sua estreia nos palcos do Teatro de Arena, atinge, agora, um grau de refinamento que só a experiência viva da cena, que só mesmo através de sua presença morena se pode perceber. A união ancestral entre poesia, música e dança – elementos primários constituintes da arte do teatro – se faz inteira no corpo de Bethânia, cuja intimidade com o palco valoriza cada pausa, o tempo preciso do intervalo de cada silêncio, o sussurro, a força dada à palavra certa. Os textos que há décadas a nossa narradora enuncia, ela o faz, hoje e a cada apresentação, como se fosse a primeira vez; por isso, o ouvinte obsessivo de sua discografia (como eu) é surpreendido sempre por uma nova possibilidade de enunciação daquelas palavras, surpreendido pela sutileza com que um novo sentido é proposto por cada sutil nuance de sua interpretação. Textos que, pela imitação da vida, são parte do drama[turgia] de nossa personagem, cantado em cena.
Um drama a que, além das palavras, as imagens projetadas sob os seus pés ajudam a contar. Cenários como o do movimento das marés que – Maricotinha nos lembra já de início – leva para outros costados todos os males; cenários encarnados de chamas – quem fala dela tem paixão!; e de matas e floretas, cenário primeiro de seu brasil xavante. Os mesmos, enfim, aludidos nas dramaturgias de tantos espetáculos emblemáticos que fizeram a trajetória de nossa personagem e que são, por assim dizer, sempre o mesmo: o ouvinte mais atento repara na semelhança dos roteiros de espetáculos como o Rosa dos Ventos, o Maricotinha, o Imitação da Vida e este Abraçar e agradecer. O drama que vem sendo cantado pelo menos desde a década de 1970 é um drama que se repete, mas como a espiral nietzschiana, chegando sempre a um novo lugar. Além da recorrência de textos como o Depois de uma tarde..., de Clarice Lispector, músicas como Rosa dos Ventos, presente nos quatro espetáculos citados, ganha, como outras, uma nova versão não só pela interpretação sempre inaudita de nossa cantora, mas também pelos arranjos faceiros que a banda regida pelo baixista Jorge Helder deu – e que, diga-se, o som afinadíssimo do Teatro do Sesi, em Porto Alegre (RS), permitiu apreender.
Entre textos e músicas que se repetem e outros que vêm como novidade – a exemplo do texto-quase-oração de autoria da própria Bethânia, com o qual abre o espetáculo após cantar Eterno em mim – é o drama de sempre, mas sempre novo, que o público poderá acompanhar pela turnê que segue Brasil afora.

E quem viver, verá!


________________
¹Publicado no Correio das Artes (suplemento do Jornal A União) de hoje a partir do espetáculo Abraçar e agradecer, de Maria Bethânia, a que assisti no último 17 de abril no Teatro do Sesi, em Porto Alegre - RS.

domingo, 28 de dezembro de 2014

repartida

(sobre o 21.12.2014)

Desacostumei do poema,
não da poesia
A prosa dos dias é que de mim
dizem
A louça na pia o trabalho na mesa o drama o drama o drama a dramaturgia
e a cama vazia
Na métrica prosaica dos dias
- dos mais quentes
aos invernais (esses sim, glaciais)
do além-trópico
que, a me ver longe, atravessei
(utópico
desejo de partir) -
sobrou pouco ou já nenhum espaço
pra ti.
Desacostumei,
mas retomo
- força maior de uma circunstância anunciada -
a forma-poema
e o conteúdo
tantas vezes precipitado

[]

Dizer na forma que era
(já agora me custa lembrar)
a própria forma de teu corpo:
um que
antes de se repartir
sobre mesas frias               
e mãos esterilizadas

partiu-se em mil
versos livres
de amor
sob mãos femininas
- sendo duas delas
as minhas

[]

Partir
Infinitivo e imperativo maior de uma existência
Partistes e te partiram muitas vezes
(em pedaços, estrofes de ti)
de modo que
- e não me entendam mal nem mal me queiram -
essa última partida
pesa apenas por ser isto: a última.
Afinal, já havias partido há tanto
de meu convívio
da rotina prosaica de meus dias
que a falta
a ausência tão doída
tão sentida por alguns

me era já uma antiga conhecida

[]

Outras partidas
Já o foram
Outras mais ainda irão de

Dez anos as separam

E tenho sido poupada
por estranha coincidência
ou graça divina
de vivenciar
assim
perto
todo o processo
até o momento átimo
(ora por infantil inocência
ora por deliberada e alheia vontade)
Talvez por isso me custe
menos
do que se esperava
- e do que, ainda agora, espero –
me custar:
pelo que
em vez de as separar
une

[]

Ou porque
como dizia Bishop:
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster

[]

Desacostumei de ti,
não da poesia
(ou da vida!)
de que eras prenhe
e que nos cabe
agora
fazer vingar
Por isso
é que
nem alegre
nem triste
nem poeta
aceito a tua ida
- tão bem quanto
mal aceitei
a outra,
e ainda melhor
que a primeira

Até
quem sabe

a vista

quinta-feira, 3 de julho de 2014

caçada

mas afinal o que tanto procuras
que não estava lá
nem esteve aqui
e o que pensas encontrar na volta

e nesse leva-e-traz
o que fica
e o que sobra

satisfaz?

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Em 10 de fevereiro, no dia seguinte ao que voltei de viagem

'Eu vim a Campina Grande diretamente da barriga de minha mãe - barriga que já nem existe mais, embora às vezes me dê uma vontade louca de voltar pra lá. E parti, anos depois, em busca de outras paragens que eu pudesse provar, aprovar, talvez desaprovar. Cheguei a Porto Alegre, que foi o lugar mais distante que consegui ir de início. Hoje, se me perguntam porque escolhi esta cidade, digo simplesmente: pela distância. E a mesma distância-motivo de minha partida é, agora, razão triste para muita saudade. Nessa terra estrangeira, não sou amiga do rei, tampouco de muitos plebeus. Aqui, nada-se, nada-se e morre-se na praia das relações. Aqui nada-se num não-mar (meu mar, cadê?) destemperado, descompensado, de estações mui radicais, intensas - e vida nem tanto assim. Se a minha terra é seca, esta aqui é estéril em muitos sentidos. E me deixa, ilhada que estou de minhas referências, propensa a erros, equívocos que tem por consequência crises de surto, de ansiedade. À minha magra silhueta sua culinária, tão pobre em variedade, também não faz bem. Cadê a pamonha, a carne de sol, a tapioca, o bolo de milho, de macaxeira, o pãozinho fresco, o arrumadinho, a peixada, etc., etc.?

No mais, agora é esperar o último caminhão, que parte sabe lá Deus quando, de volta pro meu Nordeste.' 


Numa virtual (possível!) reapresentação do Como se fosse [im]possível ficar aqui, atualização de um dos trechos finais.