domingo, 7 de junho de 2015

Maria canta o drama-da-vida de Maricotinha¹

Sobre um chão de estrelas, os pés sempre descalços de Maricotinha. Eles acompanham, dançantes, o movimento dos astros como quem atravessa, na velocidade da luz, cinquenta anos de uma existência, como este chão, iluminada.

A voz rouca do carcará que espantou ouvidos em 1965 é a mesma que encerra, ciclicamente, sob uma versão instrumental, o espetáculo de seu agradecimento, e é a trajetória dessa ave sertaneja personificada na cantora que vemos, em cena, ser contada e cantada, em luz e som.
Maricotinha é personagem-narradora. Ela surge sobre o cenário tecnicolor de Bia Lessa à semelhança dos velhos contadores de estórias quando, sentada em seu quintal imaginário, rodeada de meninos ansiosos por lhe ouvir, canta uma estória. Esses meninos, presentes em uma das imagens projetadas no imenso telão de led instalado no chão, à guisa de cenografia, esses meninos somos nós, seus espectadores, e a estória que se conta e que se canta é um drama com a extensão de uma vida, o drama-da-vida de Maricotinha.
A tônica teatral dessa figura, que, segundo consta, se faz presente desde antes de sua estreia nos palcos do Teatro de Arena, atinge, agora, um grau de refinamento que só a experiência viva da cena, que só mesmo através de sua presença morena se pode perceber. A união ancestral entre poesia, música e dança – elementos primários constituintes da arte do teatro – se faz inteira no corpo de Bethânia, cuja intimidade com o palco valoriza cada pausa, o tempo preciso do intervalo de cada silêncio, o sussurro, a força dada à palavra certa. Os textos que há décadas a nossa narradora enuncia, ela o faz, hoje e a cada apresentação, como se fosse a primeira vez; por isso, o ouvinte obsessivo de sua discografia (como eu) é surpreendido sempre por uma nova possibilidade de enunciação daquelas palavras, surpreendido pela sutileza com que um novo sentido é proposto por cada sutil nuance de sua interpretação. Textos que, pela imitação da vida, são parte do drama[turgia] de nossa personagem, cantado em cena.
Um drama a que, além das palavras, as imagens projetadas sob os seus pés ajudam a contar. Cenários como o do movimento das marés que – Maricotinha nos lembra já de início – leva para outros costados todos os males; cenários encarnados de chamas – quem fala dela tem paixão!; e de matas e floretas, cenário primeiro de seu brasil xavante. Os mesmos, enfim, aludidos nas dramaturgias de tantos espetáculos emblemáticos que fizeram a trajetória de nossa personagem e que são, por assim dizer, sempre o mesmo: o ouvinte mais atento repara na semelhança dos roteiros de espetáculos como o Rosa dos Ventos, o Maricotinha, o Imitação da Vida e este Abraçar e agradecer. O drama que vem sendo cantado pelo menos desde a década de 1970 é um drama que se repete, mas como a espiral nietzschiana, chegando sempre a um novo lugar. Além da recorrência de textos como o Depois de uma tarde..., de Clarice Lispector, músicas como Rosa dos Ventos, presente nos quatro espetáculos citados, ganha, como outras, uma nova versão não só pela interpretação sempre inaudita de nossa cantora, mas também pelos arranjos faceiros que a banda regida pelo baixista Jorge Helder deu – e que, diga-se, o som afinadíssimo do Teatro do Sesi, em Porto Alegre (RS), permitiu apreender.
Entre textos e músicas que se repetem e outros que vêm como novidade – a exemplo do texto-quase-oração de autoria da própria Bethânia, com o qual abre o espetáculo após cantar Eterno em mim – é o drama de sempre, mas sempre novo, que o público poderá acompanhar pela turnê que segue Brasil afora.

E quem viver, verá!


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¹Publicado no Correio das Artes (suplemento do Jornal A União) de hoje a partir do espetáculo Abraçar e agradecer, de Maria Bethânia, a que assisti no último 17 de abril no Teatro do Sesi, em Porto Alegre - RS.

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