A vizinhança inteira ouviu. Naquela tarde que tinha tudo para ser só a de mais um domingo modorrento, de repente fez-se alarme. Talvez não tão de repente assim. Há algum tempo já vínhamos reparando naquele casal. Eles, que chegaram à rua recém casados e que se fizeram exemplo desde então. Barulho na casa deles já estávamos acostumados a ouvir, tantos eram os risos, as gargalhadas e a música que os finais de semana abrigavam. Entre aqueles, espaços silenciosos que sabíamos guardar beijos e amassos. A rua inteira se animava quando vinham seus amigos para as freqüentes reuniões. Toda ela se enchia de alegria ao respirar a vida que aquele casal exalava. Pareciam viver numa eterna lua-de-mel. Mas, nos últimos meses, o silêncio havia penetrado na casa como uma doença, uma enfermidade que eles tentaram esconder, mas que o próprio segredo acabou por denunciar-se. Os intervalos mudos de amor que conhecíamos não eram aqueles que agora davam um ar patológico à casa. Como poderiam duas pessoas tão exclamativas de súbito calar-se? Não era normal. Algo estava acontecendo para que tivessem cessado as gargalhadas e a música. A mudez estourou:
– Olhe aqui... olha pra mim!
É hoje que cê vai sair daqui.
Mas não, não vai assim...
Quer antes, por obséquio, me devolver o equilíbrio?
Quer me devolver o sono que sumiu?
– Não, por mim tudo bem. Pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar.
Inclusive a aliança cê pode empenhar
Que nem pelo estrago eu vou lhe cobrar.
– Ok, o farei.
Mas e o meu marcapasso, dá pra consertar?
Será que dá também pra consertar meu espelho?
Mas, ainda antes disso, fica de joelhos
E começa a cuspir todos os meus beijos!
– São as sombras de tudo o que fomos nós.
Momentos de intensa emoção.
E as marcas do amor nos nossos lençóis...
– São só sentimentos de penetração,
Ensaios de idas e vindas,
Coreografias de línguas
Que a gente chamou de tesão.
– Meu pobre coração
Tão dilacerado...
– Eu li numa revista.
Bobagem isso que chamam de amor à primeira vista
– ... toda medicina do mundo
´Inda seria pouca.
– Aproveita e apaga
O gosto de pescoço da minha boca!
Detetiza a chateação que a gente chamou de desejo.
– Trata-se, então, de um despejo?
– E, por favor, ao bater o portão não faça alarde.
– Deixo tudo, levo apenas saudade
E a leve impressão de que já vou tarde.
PS: escrevi isto há dois ano. na verdade meu escrito é a introdução, o diálogo é o intercalamento quase simbiótico de dois artistas que eu adoro: de Elisa Lucinda, Texto para uma Separação; de Chico Buarque, Trocando em Miúdos.
ResponderExcluir...espero que gostem!